sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

* O prazer de contar histórias


A arte narrativa oral aperfeiçoa a comunicação e recupera a sociabilidade, estimulando o desejo de compartilhar

Fábio Fujita

A arte de contar histórias já foi vista como um mero paliativo para embalar sonhos até conquistar respeito como forma lúdica de educar as novas gerações. Nos últimos tempos, no entanto, a atividade expandiu de vez a esfera do lar, dando aos "narradores de causos" uma visibilidade crescente. É um mercado aquecido, embora os próprios contadores de história façam ressalvas quanto a eventuais distorções que são verificadas no desempenho da "profissão".

Em geral, são educadores e egressos das artes cênicas - ou uma combinação de ambos - os que se dedicam a fazer das narrativas orais o seu ganha-pão, e o interesse sobre elas talvez esteja no fato de que, para uma história ser contada, pressupõe-se a existência de um público. Ou seja: promove-se necessariamente um encontro social.

- As pessoas estão buscando o contato dos olhos, o tom da voz. É um "tocar no outro", um "chegar perto", uma confraternização. Isso foi se perdendo com o ritmo da vida moderna. A contação de histórias propõe isso: "Vem aqui para perto, que a gente vai compartilhar esse conto" - avalia Karina Giannecchini, que há mais de uma década dedica-se à atividade.

Democracia
Para outro contador de longa trajetória, Giuliano Tierno, a narrativa oral traz um sentido de "democracia cultural" na medida em que uma pessoa não instruída pode desenvolver a habilidade de narrar como compensação para o analfabetismo.

- Depois que a gente sai das onomatopeias, das primeiras interjeições, a gente vai para a palavra falada. Ela é emergente, urgente, imediata, resolve questões práticas do cotidiano e ajuda a gente a se organizar - acrescenta.

Alimentar o imaginário é, no entendimento de Giuliano, uma forma de organização. Giuliano cita a avó, que era analfabeta, mas que fingia ler notícias de jornal para ele quando menino.

- Havia uma violência naquilo. Era muito violento ela não saber ler, então ela queria colocar alguma coisa no lugar, acho.


karina a caráter: contação de histórias como meio de confraternização
Em curso
Karina, por sua vez, entende que o contador de histórias carrega uma responsabilidade grande na própria performance, referindo-se não tanto ao texto que está sendo contado, mas à articulação do discurso.

- O caipira repete aquilo que escuta. Às vezes não sabe ler, mas como não tem uma definição daquilo que estão falando para ele, ele reproduz errado - teoriza.

Por isso, acredita Karina, a boa articulação pode contribuir para o aprendizado da língua por meio da memória auditiva.

Para a maioria dos que atuam profissionalmente no segmento há a premissa de que qualquer um pode se tornar um contador de histórias. Em São Paulo, um dos cursos mais conceituados, e procurados, é ministrado por Giba Pedroza, um contador "das antigas", que atua há 25 anos. Para cada turma, cerca de 30 alunos são selecionados a partir de uma triagem com quase 300 inscrições.

Giba, no entanto, refuta a ideia de que o curso ofereça fórmulas definitivas na formação de um narrador. Usa o termo "laboratório intuitivo" para definir sua proposta, em que os alunos são estimulados a trabalhar a própria memória afetiva: estaria nas jornadas pessoais a matéria-prima a fazer emergir o contador que há em cada um.

- Por que o GPS faz tanto sucesso? - questionava ele uma de suas turmas numa das aulas no final de novembro.

E respondeu:

- Porque as pessoas não admitem perder-se, ter de perguntar a alguém. Elas querem caminhos prontos.

Giba é um contador de histórias que não usa nenhum tipo de recurso que não a voz e as eventuais variações de entonação necessárias a cada relato. Em aula, conta aos alunos sobre uma apresentação que testemunhara, em que a contadora usaria um espanador para representar uma princesa. Na hora de trazer o objeto à cena, no entanto, ela o procurou na sacola onde deveria estar e não o achou. Aquele instante de hesitação da narradora foi suficiente para fazer com que parte do público se dispersasse e debandasse.

Giba não é contra o uso de elementos cênicos. Respeita o estilo de cada contador. Apenas faz a ressalva:

- O recurso ilustrativo tem de estar a serviço da história, não pode ser refém dela.

Compreensão
Para confirmar o que dizia, ele levou àquela aula como convidada Kelly Orasi, uma contadora de histórias egressa do teatro de bonecos e que, portanto, se utiliza de objetos em performances. Kelly apresentou aos alunos um conto dos irmãos Grimm, As Três Penas, sobre uma trinca de irmãos-príncipes que disputa a herança da coroa real paterna. Para representar cada irmão, Kelly usou carretéis de linha em cores diferentes e, em muitos momentos, a simples movimentação dos carretéis era suficiente para a compreensão da trama.

- Essa história pedia o uso de objetos - reconheceu Giba, com a concordância de todos.

Karina Giannecchini também é uma contadora de histórias que faz uso de recursos cênicos em suas contações. Durante quatro encontros em novembro, no Sesc Bom Retiro, em São Paulo, protagonizou ao lado de Felipe Pereira a série Quatro Estações, que tinha como proposta falar sobre o desenvolvimento cultural da capital paulista entre os anos 1930 e 2000. No primeiro "episódio", a dupla simulava um programa de rádio do início do século 20, vestidos "a rigor". Apresentavam o noticiário e faziam leitura de crônicas, além de decorarem o local da apresentação com materiais de época - revistas, livros, fotografias.

Mas Karina não considera que tais recursos sejam imprescindíveis.

- Uso porque é o meu estilo, é como eu sei fazer. Não acho que a contação tenha de ter esses balangandãs todos - ressalva.

Quatro Estações, com Karina Giannechini e Felipe Pereira, no Sesc Bom Retiro, em São Paulo: simulação de um programa de rádio do início do século 20

Paixão
Para ela, a essência de uma boa contação não tem segredo: está no quanto o narrador tem paixão pelo assunto sobre o qual quer falar. Karina, que é de família italiana, acha que o entusiasmo de uma "mama" ao contar que usou açafrão num molho é o que dá o colorido a algo banal do cotidiano, como um almoço de domingo.

- O contador de histórias é um sujeito apaixonado. Quando ele quer dividir com você aquela história que é só dele, passa a ser sua também naquele momento.

Era em vista desse aspecto que Giba alertava seus alunos sobre a ansiedade deles frente à iminência de apresentar o "trabalho de conclusão de curso" que, claro, seria uma contação.

- Não pode ser torturante, tem de ser prazeroso - minimizava o professor, lembrando que é comum a sensação de não se sentir pronto para se apresentar como contador diante de uma plateia - mas que uma pessoa só está efetivamente pronta no próprio ato de contar.

Giuliano Tierno acrescenta que passar por alguma oficina de estrutura narrativa, ou de articulação e modulação de voz, pode ajudar, é evidente. Mas não transforma ninguém num contador de histórias. Considera a leitura, e a consequente formação de repertório, muito mais importante.

- E observar cenas do cotidiano, as imagens, lidar com o esquisito, o não nominável: o narrador tem de estar muito atento a isso. Essa é a verdadeira técnica para mim.

Adaptar um livro numa versão a ser performatizada por um contador de histórias passa, naturalmente, por um processo de síntese e adequação entre a forma lida e falada. Mas Giba Pedroza lembra que há fontes e fontes. Se é Machado de Assis, como adaptou certa vez, "não vou mudar uma vírgula". Cita também um texto de Marina Colasanti, cujo desfecho diz: "...o homem, que agora tinha rosto e nome, sorria como um sol". Giba explica:

- Tenho de falar isso, não posso substituir por "ele estava feliz, irradiante de alegria", senão vou matar toda a poesia do texto que ela criou - diz ele.

Interpretação
Kelly Orasi vai na perspectiva inversa, citando um trecho de Monteiro Lobato, que fala de "baratinhas de mantilhas e miosótis nos cabelos". Num caso desses, é preciso decodificar a linguagem para evitar o que ela chama de "buraco negro" na compreensão da história por parte da criança.

Contos clássicos consolidados na tradição oral tendem a ser mais passíveis de ser "reapropriados" ou revistos por quem conta.

- Conto e tanto reconto o mesmo conto, que acabo inventando um outro conto - alitera Giba.

Tierno diz preferir justamente as "histórias que já passaram por muitas psiques, que a humanidade já decantou bastante". Considera que estão nelas as experiências humanas mais fundas e, somadas à voz do contador (que carrega as marcas da alma e do corpo, diz), resultam em contações mais vivas, na visão dele. Cita como exemplo uma história recorrente em seu repertório: O Gigante Egoísta, de Oscar Wilde.

- É uma história que foi se modificando em mim, conforme eu conto. Não sei mais se é dele. Ainda o cito, porque não quero ser ladrão [da autoria], mas a história foi se decantando e se transformando - justifica.


Valdir Cimino, da Associação Viva e Deixe Viver: narrar humaniza o ouvinte
Atração
Os alunos de Giba Pedroza não são necessariamente pessoas que ambicionam viver da contação de histórias como profissão. Muitos se matriculam por acreditar que os fundamentos da atividade podem ser úteis em suas respectivas carreiras. É o caso do médico ortopedista Flavio Jorge, que garante ter chegado a um ponto em que começou a sentir certo cansaço para explicar a uma pessoa o porquê de ela ter ficado doente. É preciso habilidade para minimizar as histórias de terror intrínsecas à medicina, avalia. Ele cita um paciente que o procurou com uma dor no joelho que parecia inofensiva.

- Eu o entreguei para a família no caixão em seis meses - lamenta.

Era um caso de leucemia. O publicitário Valdir Cimino, que desenvolveu um trabalho de contação de histórias para crianças hospitalizadas por meio da Associação Viva e Deixe Viver, endossa o que diz Flavio: a realidade hospitalar demanda cuidados específicos e contar histórias se revela uma via de humanização em tal contexto. Certa vez, Valdir testemunhou o caso de um médico que disse à mãe de uma criança internada: "A sua filha tem apenas uma cefaleia". E deixou o quarto, sem se estender no assunto. A mãe se desesperou: o que seria uma cefaleia?

Em 1992, quando morou em Nova York, Cimino atuou com voluntariado num hospital. Sua função era fazer a leitura de jornais e livros para uma pessoa que perdera a visão por causa do câncer.

- Passei a ser os olhos dela - diz.

Quando retornou ao Brasil, começou a atuar no Hospital Emilio Ribas. Percebeu que, de cada dez crianças, apenas uma se interessava por leitura - as outras nove preferiam assistir ao Programa do Ratinho na TV. Foi assim que começou a oferecer a contação de histórias.

- Livro é importante mesmo que ele não seja desejado num primeiro momento - afirma.

Treinamento
Logo, a equipe contava com sete voluntários. A oitava, uma senhora que se oferecera para integrar o grupo, desmontou aos prantos no primeiro contato que teve com uma criança em estado grave. A partir daí, Cimino se deu conta de que nem todo mundo estava preparado para aquilo. Idealizou, então, um treinamento de seus voluntários, influenciado pelo que conhecera no hospital de Nova York, focando questões como bioética, psicologia e outras áreas ligadas ao universo dos enfermos.

Esse processo de formação do voluntário se estende por quase um ano. São 1,2 mil voluntários, presentes em 80 hospitais de São Paulo e de algumas outras capitais.

Acompanhei uma visita de voluntárias da Associação ao Instituto da Criança, no Hospital das Clínicas, em São Paulo. Uma delas, a bibliotecária Vilma Cezar, dirigiu-se ao leito de dois gêmeos de cinco meses. Abriu um livro com grandes ilustrações, e os bebês miraram aquilo com olhos vidrados, embalados pela descrição das figuras feita por Vilma.

Outra voluntária é a atriz Alexsandra Mauro, que faz o estilo divertido, com elementos de clown. Apresentou um conto de Ruth Rocha para um garoto de 11 anos e uma garota de sete.

- Só contando história mesmo para fazer essa menina parar - comentou, de passagem, uma enfermeira que por ali circulava.

Antes de entrarmos no setor de diálise, Alexsandra explicou que havia ali duas crianças muito carentes. Assim que a viram, a voluntária foi recebida com histeria: "a Tia Doida chegou! Tia Doida! Tia Doida!". Um garotinho mirrado de 12 anos reconheceu o avental das voluntárias e pediu a Vilma uma história.

Embasado por pesquisas, Cimino assevera que a experiência extrapola o aspecto recreativo, gerando ganhos clínicos para a criança enferma, como maior disposição para a alimentação (60%), melhora no estado emocional (66%) e diminuição das queixas de dor (75%). Cimino cita até casos de crianças com tentativa de suicídio que, ao longo de dois anos, se submeteram às atividades dos contadores.

- Cinco delas receberam alta - comemora.

Voluntária da Associação Viva e Deixe Viver apresenta livro a crianças internadas: melhora na qualidade de vida comprovada por pesquisas

Periferia
Entre 2004 e 2008, Kelly Orasi atuou numa ONG em Paraisópolis, periferia paulistana, desenvolvendo um trabalho de narração de histórias para crianças de seis a 12 anos. A iniciativa, mais do que focar o incentivo à leitura, tinha o pressuposto de contribuir na formação de valores: as crianças trabalhavam o desembaraço e a expressão para melhorar a autoestima. Levavam um livro por semana para casa e, no encontro seguinte, podiam contar a história lida aos colegas.

A contação de histórias não é, necessariamente, uma atividade só para os pequenos. Karina Giannecchini montou com dois colegas, em abril de 2010, o projeto Prosa Afiada, voltado para adultos, nas programações do Sesc. Na primeira edição, apresentou textos de Ignácio de Loyola Brandão e Andréa del Fuego, entre outros. Na segunda, a escolha recaiu sobre a Antologia Poética, de Vinicius de Moraes. Para adultos, a terminologia é que muitas vezes muda: o próprio Prosa Afiada se apresenta como "literatura dramática"; Quatro Estações foi divulgado como "série de encontros dramatizados". Mas, no fundo, é tudo contação.

A associação da atividade ao público infantil passa, segundo Tierno (que só faz contação para adultos) por uma questão de mercado. Ele lembra que, a partir dos anos 80, a criança passou a ser um campo de consumo muito forte, o que aqueceu o circuito do teatro infantil, que, agora, tem perdido terreno para a contação, por demandar uma produção mais econômica.

Ascensão
Há alguns anos, o jornal Folha de S.Paulo publicou uma reportagem ressaltando o contador de histórias como carreira em ascensão. Giba Pedroza, um dos entrevistados, cansou de receber ligações de gente que queria aprender o ofício visando supostas gordas remunerações.

- Uma mulher, que se dizia atriz, disse que não gostava nem de ler, nem de criança, mas que contaria história em festa infantil para juntar dinheiro e montar seu espetáculo - horroriza-se Giba.

Giuliano Tierno coordena uma pós-gradução lato sensu em contação de histórias, pioneira, que tem a proposta de desconstruir a estereotipia criada em cima da atividade.

- Muitos contratantes só valorizam a palavra espetacularizada. Precisamos criar uma dissonância reflexiva acerca desse movimento que vai esvaziando a palavra - analisa.

Para ele, o fenômeno do stand up comedy, que parece se beneficiar da explosão do setor, pouco tem a ver com a arte narrativa.

- Ele reforça aquilo que a gente já pensa. Falar mal da política? Já penso isso. A história pode ir para outro lugar. Pode me dar algo que eu não conhecia - diz, para esmiuçar a diferença.

Contar uma história pode ser apenas isso, defendem os amantes da arte da narrativa oral: a abertura para um caminho que deve ser cruzado não tanto pela necessidade de chegar, mas pelo prazer de curtir a paisagem. 

Fonte: http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=12489

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